quarta-feira, 14 de abril de 2010

Onirismo



E finalmente ele acordou. Assustado, envolto na desorganização dos pensamentos que ainda viajavam na velocidade da luz. Sentiu ânsia de vômito, bocejou, pensou em deitar novamente. Mas não deitou. Levantou-se num súbito pulo da cama. E ela sentiu a aspereza do salto que desarrumou o lençol. Ele não permitiu sequer que ela o interpelasse - bateu a porta do quarto e saiu. Foi à cozinha, bebeu um pouco de vinho que sobrara do jantar - mais uma tentativa dela de ser a "mulher perfeita", sempre inventando jantares "temáticos" para preencher o vazio existente. Há muito ele não era o mesmo - andava tristonho, um pouco arredio, sem vontade nem mesmo de trabalhar. Descobrira que aquela relação baseava-se numa oportunidade para ela e numa fuga momentânea para ele. O mais intrigante era o universo que apresentava-se para ele diariamente nos últimos meses. Vários sonhos com a mesma pessoa - uma pessoa que o tempo transformara em passado. E esse passado não se fazia presente. A angústia tomou-lhe grande parte das horas. Enfim, flertava com o que ele acreditava ser a loucura. Passou a lembrar de momentos não vividos, fantasiando situações onde realidade e surrealismo dançavam uma valsa cujo disco estava arranhado. Vasculhou as verdadeiras e únicas lembranças - essas sim, reais. E materiais. Já tinha perdido a conta de quantas vezes havia lido aquele livro e visto aquele filme. Sabia de cor todos os parágrafos e todas as falas. Mas isso não bastava. O mais desesperador era saber que aquela pessoa morava no mesmo país, no mesmo Estado. Só não moravam mais na mesma cidade. A vontade de procurá-la era incessante, porém a incerteza da resposta o amedrontava. Não saber se ela permitiria uma aproximação o entristecia de forma pungente. Enquanto ele juntava passado e presente numa tentativa de construir um universo particular, ela, na outra cidade, apagava cada vez mais qualquer resquício ligado ao seu passado. Ganhou de presente uma borracha infalível, capaz de apagar até mesmo os resquícios familiares, os mais sofríveis na opinião dela. Começo para um, dúvida para o outro. Liberdade conquistada para ela, clausura voluntária para ele. O mundo lá fora cada vez maior para ela, o universo particular cada vez mais fechado para ele. Antíteses que formavam uma dura - e crua - realidade. Ela viva. E ele, apenas sonhava.